Qual seria a nossa reação ao descobrir, depois de um
bom tempo juntos, que a pessoa com quem dividimos uma existência, tem HIV e
nunca nos contou? ‘Mexam com o nosso coração, mas nunca com o nosso
sangue’.
Já vinha
pensando em escrever sobre esse assunto há um tempo, mas não sabia por onde
começar. Para a alegria da minha inspiração, um e-mail recebido de um leitor
assíduo do meu blog, que preferiu preservar a sua identidade, caiu como uma
luva. Narrou a sua história e pediu que
eu a publicasse no intuito de abrir a mente das pessoas que enxergam a AIDS
como um estigma ou que, simplesmente não pensam sobre o assunto. Cada um lerá
no silêncio da sua alma, assimilará com a consciência e gladiará com seus próprios
anjos e demônios. A fragilidade reina quando se tocam em assuntos como
rejeição, impunidade e morte: isso é o que nos vem à mente quando falamos sobre
HIV. Quem, por mais puritano que seja, não vive a angústia de abrir o resultado
de um exame?
Mas antes
quero falar sobre um fato que presenciei.
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Certa vez,
jogando papo fora com amigos numa mesa de bar, uma ambulante, voluntária de uma
Ong da qual não me recordo o nome, chegou sem pedir licença e jogou alguns kits
sobre a mesa: um broche; uma camisinha e um folder explicativo com emblemas
escritos em letras garrafais: PREVINA-SE
CONTRA A AIDS.
Nem precisa
dizer que um silêncio fatídico se instalou por uma fração de segundos que
pareciam eternos - chegava a incomodar. A sensação que eu tinha era a de que
uma arma nos fora apontada na cabeça e ao invés de nos roubar qualquer coisa
material, nos tirou a sensação da zona de conforto que, naquela tarde, era
celebrada por alguns copos de cerveja. Sim, porque se você tem saúde, emprego,
família, um teto pra dormir ou, um romance que seja – bem vindo à zona de
conforto que talvez você nem dê tanto valor.
Sem
pestanejar todos sacaram os dez reais e pagaram pelo kit alforria que no
inconsciente dizia: Não quero que isso aconteça comigo. Porque a gente, na nossa mediocridade,
acredita que alguns problemas nunca vão bater na nossa porta. E ajudamos porque
somos bons, solidários, generosos. Mentira! Ajudamos pelo egoísmo, pelo receio
de um dia experimentar a dor de uma cama, pelo medo de conviver com a ideia da
morte num calendário, por puro receio de que um dia possa acontecer conosco e
não haver uma mão que possamos segurar. É o famoso desencargo de consciência. Isso
explica porque as campanhas contra câncer, crianças carentes, deficientes físicos
estão sempre batendo os recordes em suas arrecadações – por puro medo.
Esse, ainda é
sim um tema polêmico que causa tremor nas pernas, cutuca na fraqueza do ser
humano e nos faz repensar atitudes guardadas a sete chaves. Mas já temos a consciência de que a AIDS em
2014 não é mais o fantasma da década de 80 em que era vista por todos como uma
“lepra” da Bíblia que punia os gays - passível de todos os julgamentos
possíveis. Hoje em dia, dados apontam que os heterossexuais já se tornaram o
maior grupo de risco e aquela imagem do Cazuza definhando numa cama também é
passado. Vive-se com HIV como um diabético: tomando os remédios e preservando
hábitos saudáveis.
Seguiremos
com a história do leitor que prefiro intitular como Marcelo.
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Foi através das Redes Sociais que
eles se apaixonaram, embora tenham se conhecido mesmo só depois de algum tempo.
Hoje as etapas são invertidas e já nos habituamos com isso. Quando estavam juntos conseguiam experimentar
a sensação de se complementarem, exatamente como mostra nos filmes de amor;
como cita a sinastria da Astrologia, como acontece com a maioria das pessoas
quando escuta um “Eu te amo” que vem da alma – é brilho nos olhos na certa.
O problema da
intimidade é que ela acaba embaçando a pintura de uma vida perfeita que criamos
na nossa imaginação. E no caso deles a primeira borrada de tinta apareceu
quando Marcelo decidiu, por alguma desconfiança, vasculhar a agenda telefônica
de seu namorado.
Beirando a
imparcialidade, abro um parêntese: (Se você acredita no seu parceiro suficientemente
para transar sem proteção, mexer no seu celular seria um ato tremendamente
contraditório). Cada um com o seu espaço. Ponto para a camisinha e que venha a
confiança.
O resultado obviamente
não foi dos melhores, uma agenda recheada, com uma quantidade infindável de
nomes como: Ale Sampa, André Hornet...
Beto Scruff, Breno ativão ... C, X,
Y, Z. Ali ele descobriu que tinha se
apaixonado por um verdadeiro pegador, cuja vida sexual era bastante agitada. E
que atire a primeira pedra quem nunca teve a sua fase. A gente tem zero influência sobre a opção de
vida das pessoas e nenhum poder de mudar o passado de alguém. Quando decidimos
apostar num relacionamento o que está em jogo é o ponto de partida. Foi
pensando assim que Marcelo deu uma chance à sua relação passando por cima de
contatos que, a certa altura, eram apenas números aleatórios, sem o menor
significado para ambos.
Numa viagem de
férias para a casa de praia dos amigos ele, por uma ordem súbita da sua
intuição, decidiu mexer na bolsa de
seu amado e encontrou um pequeno malote de alumínio, bastante curioso. Era como
se tivesse encontrado a caixa de Pandora e ao abrir se deparou com comprimidos.
Seu namorado flagrou o incidente, tomou-lhe o malote com fúria e tentou se
esquivar. Após uma série de questionamentos que mais pareciam táticas de
tortura, as lágrimas escorriam, o rapaz caiu num choro compulsivo, implorou por
um perdão imprevisível e a verdade veio à tona: o pegador com centenas de
contatos do celular era soropositivo. Era quase impossível perceber, mal
adoecia, tinha uma vida saudável, um corpo tão lindo que colocava muita gente
no chinelo. Vale lembrar que o fato de o rapaz ser o “pegador” não determina
que o mesmo tenha a doença, sei de casos de pessoas que foram infectadas na
primeira relação.
E, a hora
certa pra contar e como contar? Isso já foge da minha alçada, apesar de que
rende um novo texto.
Juntam-se as
peças, monta-se o quebra-cabeça e partem-se corações. Todos os dias lares são
surpreendidos com notícias desse tipo. Tudo isso nos faz questionar o
comportamento humano em momentos de extrema pressão psicológica. Olhando com um
olhar mais crítico e fazendo um retrospecto mental, quantas das pessoas com
quem já transamos eram soropositivas? Nem perca seu tempo. Impossível ter
acesso a esse tipo de informação.
Não dá pra
generalizar e nem pra viver de estatísticas, mas no meio desse caldeirão de
relações sexuais, pode apostar, já cruzamos com gente que nunca fez um exame de
sangue, com outras que, apesar de soropositivas, se medicam e gozam da saúde plena
e, também, com uma pequena fatia que, ao invés de mexer no queijo, vai mexer no
nosso sangue - por pura maldade - pela raiva de não aceitar o fato de terem
sido infectadas e levarem a ferro e fogo um senso de justiça totalmente
corruptível e desumano. Pessoas mal intencionadas estão por toda parte e é bom
esclarecer que, nesse caso, ninguém é vítima. Não caiamos nessa cilada. Doar
dez reais para uma Ong não é o suficiente para livrar a nossa cara.
Para a
felicidade do casal, que não é uma amostra fidedigna de todos os
relacionamentos, nada foi alterado em suas vidas, seja com relação ao sangue ou
aos planos de viver uma vida a dois. Ambos estão em perfeita saúde e apesar de soro
discordantes, entenderam o significado da
resiliência, rasgaram o rascunho e reescreveram uma nova história, dessa vez
mais realista – amar sem ficar consumido pela ideia do eterno, mas com foco na
confiança e no companheirismo.
‘Marcelo, antes de sair para o trabalho, deu um beijo no
namorado que ainda estava jogado na cama e sussurrou-lhe nos ouvidos: – Amor,
não se esqueça de tomar os remédios às dez horas. E se foi deixando no rapaz
aquela sensação de: Obrigado por me fazer feliz. ’
Isso é amar nos
pequenos gestos, isso é condição de entrega.
Bruno de Abreu Rangel
Você tem um grande poder de persuasão. E consegue escrever sobre qualquer tipo de assunto sem se perder. Excelente.
ResponderExcluirBaphooooooonico o artigo. As bi vão pirar.
ResponderExcluirMuito lindo, me emocionei com o final.
ResponderExcluirFaz anos que pratico apenas sexo com proteção. Não foi suficiente.
ResponderExcluirHá cinco dias fui diagnosticado. Há quatro, descobri que fui infectado propositadamente: o parceiro retirou a camisinha antes de ejacular e eu não percebi. Ele QUERIA me contaminar. Conseguiu.
Na próxima semana, saberei meu quadro clínico e terei um prognóstico.
Creio que "a ficha ainda não caiu". Não sinto absolutamente coisa alguma; sentimento algum, seja raiva, medo, preocupação... Um estado psicológico de negação? Talvez.
O que eu sei é que ser soropositivo não me definirá como pessoa, profissional, parceiro, irmão, filho. E sei, também, que a pessoa que cometeu essa tentativa de assassinato, logo receberá o que merece pela "Lei do Retorno".
Você poderia escrever também sobre relatos das pessoas que se isolam quando descobrem ser soropositivas e têm medo de se relacionar com o receio que descubram o seu diagnóstico.
ResponderExcluirMuito sutil e brando. 10!
ResponderExcluirUma pena que as pessoas lêem pouco no Brasil, seria um bom momento pra você estimular o público gay a ler mais. Você tem uma linguágem acessivel e o dom da palavra.
ResponderExcluirShould write more in english as you did with first one. XOXO
ResponderExcluirAgnt