terça-feira, 25 de novembro de 2014

Sobre ter medo do escuro

Quando a nossa luz interior se apaga.


O fato aconteceu num vilarejo no interior do Peru: Ollantayatambo. Pelo nome vê-se que não é um dos lugares mais cobiçados do planeta. Mas como tudo fora do convencional, tem lá seus encantos. E autenticidade é algo que me atrai como um imã.

Era um desses dias de inverno e a estação tinha colorido as árvores de amarelo. A temperatura estava agradável, com um friozinho bem no ponto – nem mais, nem menos.  Eu e mais dois amigos, depois de longas caminhadas turísticas que se estenderam até o crepúsculo, tínhamos o objetivo de sairmos pra cumprir o ritual mais cobiçado pelos viajantes de plantão: jantar fora. Como esperado, o cochilo de um, o banho demorado de outro e as atualizações nas redes sociais nos levaram ao restaurante em cima da hora.

Saímos como loucos desvairados caminhando às pressas por uma estrada bem simples, com pouca iluminação, quase nenhum movimento, e com uma neblina que já intimidava.  É um cenário propício pra cair nas gargalhadas quando se está na companhia de bons amigos, de pessoas que nos fazem sorrir de graça e nos contaminam com o alto astral. Bom, isso até a segunda página.
Nos 45 do segundo tempo, quando já estávamos há cinco passos do restaurante...

... KABUM

Fez-se um barulho como se alguém tivesse desligado um disjuntor universal e a pequena cidade ficou completamente sem luz. Mas era breu mesmo, do tipo em que mal conseguimos nos mover. Só pra constar, atrás de nós estava um dos maiores templos incas suspirando um cenário de muita guerra, escravidão e com uma atmosfera densa. E então começaram as especulações sobre as almas perdidas, as chacotas sobre insetos peçonhentos subindo as pernas; o incômodo do Wi-Fi que não dava sinal de vida nos celulares; a decepção do jantar que, à certa altura, teria ido pro beleléu. Realmente é angustiante não enxergar nada, não avistar um horizonte, ou uma faísca de luz quando estamos no fundo do poço. Quando as luzes se apagam, nem tudo são flores. Somos nós e os nossos medos.

Com o medo do escuro, a gente não sai do lugar, resiste em tentar mais uma vez, não bate na porta de alguém que ferimos pra pedir desculpas, evitamos nos apaixonar de novo: frustação? Não, obrigado. Desistimos de ressuscitar os sonhos que morreram, deixamos a tristeza virar rotina e vamos lamber nossas feridas em silêncio como se tivéssemos racionando uma energia pra evitar um futuro apagão. Isso é auto boicote. Por não enfrentar a escuridão, a gente transforma um problema imaginário num monstro real, cria um pavor pelo desconhecido, reluta em mudar de vida, de emprego, de cidade... E se der errado? E se o dinheiro acabar, e se eu terminar doente, e se eu for abandonado por quem mais amo, é tanto “e se” que chega a encurralar qualquer otimismo na parede: 10 a 0 para o medo.

A hostess, que a certa altura desempenhava, também, o papel de garçonete e cozinheira, passou as chaves na porta do restaurante e nos saldou com um sorriso estonteante, revelado por um castiçal improvisado numa garrafa de vinho, que tão logo foi colocado na nossa mesa. Não tem cartão de crédito que pague um momento mágico desses. Não me lembro de ter degustado um ceviche tão saboroso como aquele feito numa iluminação fraca. Com a falta de luz a gente aprende que um jantar pode ser mais romântico, que os amigos ficam mais próximos, e as conversas mais íntimas.
Depois da escuridão, há luz. Depois da noite, vem o dia. E, por mais que associemos o escuro à maldição e o claro à benção, a paz de espírito é a verdadeira lanterna da alma. É a gente que decide os interruptores que vai acender, as esquinas que vai dobrar, as portas que vai abrir. Algumas vezes, optamos por caminhos mais sombrios, mas faz parte do nosso crescimento. Meia volta e #partiurecomeçar.

Quando ativamos a nossa própria luz nos fortalecemos para virar a página de uma história não correspondida, desistimos de pensar de maneira obsessiva em pessoas que insistem nos menosprezar, nos empregos que não vingaram, nos projetos que não saíram conforme o planejado; não nos preocupamos em estar sempre no controle de tudo, abrimos mão de viver a falsa felicidade das redes sociais. Entendemos que, nem sempre, as pessoas nos ferem de propósito, as coisas acontecem naturalmente. Deu errado, refaça, trace outra estratégia e defina, porque a indefinição só dispersa energia.  E a falta da energia apaga a nossa luz interior.

É preciso ativar a reserva de forças que adquirimos ao longo da nossa existência (nosso gerador pessoal). A vida está nos lugares que visitamos; nas pessoas que cruzam o nosso destino; no paladar de uma comidinha caseira que nenhum restaurante chique é capaz de reproduzir; nos amores que terminaram, mas que deram certo enquanto existiram; numa conchinha de um domingo chuvoso, num cafuné aconchegante dos nossos pais; num elogio que veio na hora certa trazendo a autoestima de volta; num “eu te amo” dito no pé do ouvido; num pequeno gesto de alguém que entrou para a lista de melhores amigos, ou num jantar a luz de velas no interior do Peru que o Universo se encarregou de nos surpreender.


Bruno de Abreu Rangel